11 dezembro, 2011

Homilias dominicais (citando Saramago) - 61

Os dias passam e, por vezes, sentindo intensamente o sentido dos dias, esquecemo-nos das datas. Ontem foi dia em que se comemorou a, certamente, ovacionada carta. A minha distracção tem razão de ser, pois é preciso estar concentrado com um olho no carneiro outro no lobo. É que de cada vez que o faço, descubro novas realidades que são réplicas de realidades históricas: o lobo não é o lobo verdadeiro e o carneiro é um borrego que se enganou a vestir a pele, cuidado ser a do lobo. Caiu, assim, em desuso a expressão “quem não quer ser lobo não lhe veste a pele” pela simples razão de esta democracia colocar a aspiração (e criar a visão, se não o sonho) de todos podermos ser lobos… mansos como cordeiros e seguidores, que nem carneiros. Não é uma contradição dos nossos dias. É apenas a nova versão da tão velha constatação de que o homem continua a ser o lobo do homem, mas onde a máscara é o valor mais respeitado. Não invejo a selva, mas reconheço que as suas leis são mais inteligíveis e eticamente mais aceitáveis: à porta da grande superfície alguém, não sei se lobo se cordeiro, pede erva para dar aos anhos. E os carneiros sorriem por o peditório ter batido o recorde, contra a fome. Todos adoram os gestos de caridade e se compadecem com as criancinhas que sofrem… Salvar-se-á o Estado Social? O lobo sorri e não responde… aguarda paciente a nova eleição. A exploração do homem pelo homem segue essa regra.

HOMILIA DE HOJE
“Eu digo muitas vezes que o instinto serve melhor os animais do que a razão a nossa espécie. E o instinto serve melhor os animais porque é conservador, defende a vida. Se um animal come outro, come-o porque tem de comer, porque tem de viver; mas quando assistimos a cenas de lutas terríveis entre animais, o leão que persegue a gazela e que a morde e que a mata e que a devora, parece que o nosso coração sensível dirá «que coisa tão cruel». Não: quem se comporta com crueldade é o homem, não é o animal, aquilo não é crueldade; o animal não tortura, é o homem que tortura. Então o que eu critico é o comportamento do ser humano, um ser dotado de razão, razão disciplinadora, organizadora, mantenedora da vida, que deveria sê-lo e que não o é; o que eu critico é a facilidade com que o ser humano se corrompe, com que se torna maligno.”
(…)
Falámos muito ao longo destes últimos anos (e felizmente continuamos a falar) dos direitos humanos; simplesmente deixámos de falar de uma coisa muito simples, que são os deveres humanos, que são sempre deveres em relação aos outros, sobretudo. E é essa indiferença em relação ao outro, essa espécie de desprezo do outro, que eu me pergunto se tem algum sentido numa situação ou no quadro de existência de uma espécie que se diz racional. Isso, de facto, não posso entender, é uma das minhas grandes angústias."


.............................................................."Declaração Universal dos Direitos Humanos", in Fundação José Saramago

9 comentários:

  1. Ora aqui está a frase mestra:

    "...deixámos de falar de uma coisa muito simples, que são os deveres humanos..."

    Um beijo

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  2. Direitos e deveres, cartas que, de tão viciadas, se perdeu o seu rasto original. Perdeu-se, ou deixámos que se perdesse?

    Abraço

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  3. O Rogério com esta frase disse tudo:
    "Não invejo a selva, mas reconheço que as suas leis são mais inteligíveis e eticamente mais aceitáveis: à porta da grande superfície alguém, não sei se lobo se cordeiro, pede erva para dar aos anhos. E os carneiros sorriem por o peditório ter batido o recorde, contra a fome. Todos adoram os gestos de caridade e se compadecem com as criancinhas que sofrem… Salvar-se-á o Estado Social? O lobo sorri e não responde… aguarda paciente a nova eleição. A exploração do homem pelo homem segue essa regra."
    Por mim bateu Saramago, ele lembrar-se-ía do que aí está implicado? O seu post está fenomenal!
    O que o Rogério aí menciona é o mesmo que eu aqui. Imagine as palavras que tive de escrever!
    Um abraço

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  4. Direitos e Deveres, se não caminharem lado a lado, jamais terão serventia alguma.
    A Declaração Universal dos Direitos Humanos declarada no ano de 1948 do século passado, tem sido sistematicamente violada nos Países que mais a proclamaram e defenderam, nomeadamente os EUA.
    Essa noção tem que partir individualmente de cada um de nós.

    Nesta Homilia de hoje, que tanto me disse, faço minha a angústia de José Saramago.
    Um beijo.

    Janita

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  5. O maior problema e quando os direitos do outro interferem com os meus:)

    Val uns camaroes a Beira mar? Tambem temos direito a uns miminhos

    Bjinhos
    Paula

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  6. Caro Rogério
    Este post (lido e relido) não tem ponta por onde se lhe pegue. Ou seja nada a acrescentar e se havia já os comentadores que me antecederam o fizeram.
    Gostei particularmente daquela parte em que se refere à nova "caridadezinha".
    Abraço

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  7. Tal como Saramago, também sabemos que só o homem tortura e que o Carta dos Direitos Humanos existe para ser esquecida.

    Texto perfeito, Rogério.
    O lobo e o cordeiro, mera questão de pele. Nada mais conta para este "gente".
    O texto remeteu-me a passagens do Evangelho Segundo Jesus Cristo, onde o Diabo e Deus são incessantemente cunfundíveis.

    Beijinhos

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  8. Gostei do enquadramente que fez, utilizando a referência à Declação Internacional dos Direitos Humanos. Fosse o homem capaz de, através da sua inteligência e racionalidade, olhar em redor de si e não haveria necessidade nenhuma de uma Carta que, vistas bem as coisas não passa de um mero tratado de intenções, caído no esquecimento.

    Um beijo

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  9. Sem que se cumpram os deveres do homem para com os homens, não há "Direitos" que resistam.

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