10 janeiro, 2013

Poesia (uma por dia) - 25


I - meia lua e o pássaro
Nesse dia ao sair de casa o rapaz percebeu que a rua não era a mesma. Ficou uns minutos parado, as mãos nos bolsos, os olhos entreabertos, os ouvidos à escuta. Sentiu no ar um cheiro a sementes de sésamo queimadas e não havia vento. Não reconheceu mais nada.
Lembrou-se que aquele ano não tinha começado exactamente como os outros. O pai resmungou, estou desiludido. A mãe pegou na mochila do irmão mais velho, meteu-a na máquina da roupa no programa da água quente para tirar as nódoas, a mochila encolheu. A mãe disse, não faz mal tu também és mais pequeno, e coseu etiquetas a tapar os buracos. Ele pensou, vão gozar comigo, mas não ligou muito a esse facto, e agora que via a professora de português por quem ele estava apaixonado desde o 5º ano, cada vez mais distante, ainda menos. A turma tinha tantos alunos, que no exato momento em que os professores terminavam a chamada, a campainha tocava para o intervalo. Deste modo, aprendiam no recreio uns com os outros e com a matula do bairro XZY que entrava pelos buracos que já não tinham rede. Os Bairros em Processo de Exclusão Instalada eram tantos, a quem ninguém vivo e muito menos morto desejava ver o seu nome associado. Daí a combinação das letras do alfabeto. Claro que a designação atribuída a estes bairros era perfeitamente ridícula e contraditória, pois um processo significa um projecto  um trajecto  e instalada, significa que já não há volta a dar, acomodada.
Mas ele não era bom aluno. Recusava-se a escrever nas paredes e a roubar bicicletas. Era um rapaz estranho, parecia estar sempre distraído, ausente, do outro lado das coisas. No entanto entendia a geometria das casas e das ruas, salvava os gatos assustados no alto das árvores, tratava das feridas aos cães vadios, plantava junquilhos nos buracos da calçada. De manhã quando saía para a escola com o seu fato de marinheiro antiquado, todos lhe diziam bom dia e ele guardava no bolso azul turquesa os recados que tinha que fazer à mãe.
Foi então que apareceu a correr, o pássaro. As patas bem firmes, as pernas longuíssimas, as penas no alto da cabeça a esvoaçar e gritava, não fiques aí parado, não vês tanto desolhar? vem comigo. E assim correram os dois durante vinte e cinco minutos, o rapaz cansado pensou que andava a exagerar nas bolachas e o pássaro a deitar alpista pela boca.
Meia Lua chama-se o rapaz e encontrou o pássaro das histórias.
Desolhar é a terra do povo do outro lado das vozes.

Manuela Baptista / Histórias Com Mar Ao Fundo

11 comentários:

  1. http://blueshell.blogspot.pt/2013/01/estou-pronta.html

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  2. desolhamos o olhar dos outros,

    talvez tenhamos de voltar a escrever nas paredes como os rapazes do bairro XZY,

    novas palavras, pela calada do dia

    obrigada, Rogério!

    e

    a tela é de Fernando Pedrosa

    um abraço

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  3. Tanto desolhar!...

    Um belíssimo texto.


    Lídia

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  4. Não conheço a autora e não quero dizer asneiras.

    Mas gostei do que li.

    Abraço

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  5. Confesso que desconhecia a autora, mas vou dar uma espreitadela a esssas Histórias com Mar ao Fundo, porque este texto aguçou-me o apetite. E não foi da maresia...

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  6. É um texto muito belo! Registo o nome da autora...

    beijinho

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  7. Poderá "o lua" ser meia, mas o conto é de mão cheia.

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  8. Quando li, lá escrevi:

    "e se o chamado fosse outro nome
    e a professora fosse a de matemática
    e a corrida fosse de trinta minutos
    diria
    que tinhas escrito a minha biografia

    (desolhar é qualquer terra, deste mundo)"

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  9. VOu ver o blog da Manuela deve ser interessante.
    Parece de contos, daqueles que são de encantar.
    Fiquei muito curioso.
    Penso que apenas as mulheres sabem contar belos contos, os homens podem tentar, mas...mas.

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  10. Tanto que eu gostei desta "história com mar ao fundo"! Não conheço a Manuela Baptista mas gostei muito, muito, deste texto!

    Abraço grande!

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