23 dezembro, 2017

Contos de Natal - IV (Por não ter conseguido comprar um sorriso?)

Este quarto conto, de 2014, completa a série publicada em 2013 e que tenho vindo a reeditar

Há muito que abandonara o ter de estar a tempo para fazer o quer que fosse, ou estar com quem quer que seja. Contudo, se controlasse o tempo constataria que cumpria rigorosamente, à hora certa, a rotina que a ele próprio há muito se impusera. Só raramente sabia o dia, semana, mês em que fazia o que ia fazendo. Deixara, também, de se importar com essa escala do tempo. Ninguém lhe perguntava há quanto a filha partira. Se o fizessem não saberia responder. Nem há quanto lhe deixara ela de lhe escrever, ou telefonar. Ao principio sofrera com a partida como sofrera com a inesperada viuvez. Quando? Há cinco, há dez anos? Quase ao mesmo tempo em que deixou de medir o tempo, deixou de se importar com as ausências. Ao certo, ao certo, nem se dava pela sua própria presença. Era como se não existisse há cinco, há dez ou talvez mais anos. Era como se ele próprio tivesse partido. Já não ligava à Sua Alma nem mantinha aquele diálogo acalorado com o Seu Contrário, que a pouco e pouco se afastou do seu juízo. Estava só, até de si.

Naquele dia acordou sobressaltado. Na cama, tateou ao seu lado a procurá-la pois parecia ter sentido o seu calor, o respirar manso e o seu cheiro doce. Pronunciou o seu nome como num chamamento. Depois repetiu, e repetiu, enquanto se levantava e percorria toda a casa. Percorreu-a três vezes até confirmar que ali estava apenas ele.

Lavou-se e escanhoou-se. Vestiu-se, escolhendo demoradamente a roupa. Foi à gaveta e recolheu todas as moedas e uma nota pequena, tudo o que lhe restava da pensão magra. Guardou tudo sem contar nem se lembrar de quando vociferava contra ministros e políticos a quem acusava, a esmo, pelo seu empobrecimento. Saiu. Entrou no café ao fim da rua. Pediu um café. A empregada trouxe-o. Ele pagou com um generosa gorjeta, disse, "fique com o troco", e ficou à espera que se lhe alterasse o rosto. E nada, como resposta um seco "obrigada" e mais nada. Deixou passar algum tempo e pediu outro. Na altura de pagar colocou sobre a mesa tudo o que tinha. A empregada transfigurou o rosto, não no sorriso em que tanto tinha investido, mas num ar de surpresa com um misto de submisso agradecimento e uma exclamação "tanto?". Depois foi-se com um sumido "obrigada". 

Nos dias seguintes não comeu, a esperança de obter um sorriso amigo dava-me a energia necessária para cada caminhada. E andava, e andava. Sentou-se num banco, por baixo de uma arvore imensa de tronco desnudado. Apercebeu-se quanto o seu corpo estava frio de um frio que não sentiu. À sua frente apareceu então o sorriso, aquele que não procurava. A Morte estendeu-lhe a mão e disse "Anda". E ele foi.
Se controlasse o tempo, teria dado conta ter sido quase à hora e no mesmo dia em que o Menino nascia.

3 comentários:

  1. Este conto não creio que o tivesse já lido, caso contrário não o teria esquecido, Rogério.
    É muito triste ficar-se sozinho, mas mais triste ainda é não ter forças para continuar a trilhar o caminho.
    Eu teria preferido saber que ele tinha partido no quentinho da sua cama.
    Um banco de jardim é um sítio muito desolador para nos despedirmos da vida. Mas foi assim que aconteceu.
    Partir quando o Menino nasceu.

    .


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  2. Apesar de ser um conto triste, eu gostei de ler. A solidão é aquilo que mais temo. Penso que até a morte é preferível à solidão. Abraço e um Natal partilhado com muitos sorrisos de Amor à sua volta

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  3. O viver e o morrer
    faz parte ou é a própria vida
    e o próprio viver!
    E quem isso compreender,
    não só compreende a essência da vida,
    nunca terá medo de morrer!

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